Kraftwerk

Computer World previu todo o futuro

Computer World, um disco lançado pelo grupo alemão Kraftwerk em maio de 1981, há quase 40 anos, traz uma visão completa do mundo de hoje, descrevendo em 34 minutos um mundo cheio de agências coletando dados dos cidadãos, comércio eletrônico, usuários solitários do Tinder, música eletrônica e hackers programando noite à fora em um porão.

Como muitas obras de arte que antecipam a forma que as coisas terão no futuro, é fácil perder a perspectiva do que elas significaram quando o amanhã chega e a visão se concretiza.

A maneira com que as coisas são hoje parece uma consequência inevitável de como elas eram ontem e não apenas um entre muitos possíveis desdobramentos.

Para se dar conta disso, é preciso tentar se colocar na posição de quem estava em 1981, quando 2018 era um futuro tão distante como 2055 é para nós hoje.

Um bom lugar para começar a ver isso é na própria capa do que então era o long play de Computer World, na qual as cabeças dos quatro integrantes daquela formação do Kraftwerk aparecem lado a lado na tela de um computador, como um monte de Rushmore teutônico.

Em fóruns de debate na internet, fãs debatem qual seria esse computador. As apostas variam entre algumas máquinas populares nos anos 70, como os terminais da NCR e Commodore, mas a hipótese mais aceita é que se trata de um HZ-1500, lançado pela Hazeltine Corporation em 1977.

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Operações de output e input de dados

A Hazeltine Corporation foi fundada em 1924 e criou tecnologias muito influentes no mundo do rádio AM, além de ter criado muitos dos conceitos básicos do que veio a ser o padrão de cores de televisão NTSC.

A empresa não existe mais: por diversos processos de compra e venda, o que ainda existe dela é hoje uma divisão da gigante de defesa BAE.

Fui dar uma olhada no manual do HZ 1500 (eu sei, minha vida é realmente fascinante). Ele diz coisas como: “A velocidade, silêncio e flexibilidade, junto com features orientadas para o operador do Hazeltine 1500 melhoram a eficiência do software e do programador nas operações de input e output de dados”.

Um conselho mais prático na página seguinte dá uma noção do tipo de máquina que o HZ 1500 era: o manual instrui os compradores a deixarem a máquina aquecer por pelo menos uma hora para atingir a temperatura do ambiente no qual será usada antes de ser ligada.

Os computadores tal e como nós os conhecemos hoje ainda não existiam durante o período em que Computer World estava sendo gravado.

Na época, ainda faltavam alguns meses para o lançamento do IBM 5150, o reconhecimento da gigante de tecnologia da época de que havia afinal um mercado para computadores pessoais.

A Apple havia realizado um IPO promissor no final de 1980, mas ainda estava anos distante de lançar o Lisa, o primeiro computador com uma interface gráfica, um item sem o qual qualquer gadget hoje seria mais inútil do que um relógio para uma vaca, chegou ao mercado só em 1983.

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Sobe o som, DJ

Colocando o LP na vitrola (já passou tanto tempo desde o lançamento de Computer World que isso agora já voltou a ser moderno) a primeira faixa do lado A é Computerwelt (vou usar a versão em alemão do disco, por motivos a serem comentados adiante).

“Interpol und Deutsche Bank / FBI und Scotland Yard / Flensburg und das BKA / Haben unsere Daten da”

Introduz a voz robótica de um dos integrantes do grupo, listando serviços policiais (o BKA é o FBI alemão), o maior banco da Alemanha e Flensburg, cidade no norte do país onde fica sediado a versão local do Detran, para concluir que “eles têm os nossos dados”.

A escolha da expressão “ter os dados” é a chave aqui. A letra não fala da atuação do sistema como uma atividade de controle ou vigilância sobre indivíduos específicos em linha com o universo ainda analógico das tarefas de policiais, espiões e corporações malignas da época, mas sim como uma espécie de acumulação de informação como um fim em si mesmo, a estratégia de juntar toda a palha para achar as agulhas da NSA que o mundo conheceu em 2013.

As frases seguintes são reveladoras sobre essa ideia de um fluxo de transações impessoais em rede.

“Nummern, Zahlen / Handel, Leute / Computerwelt / Computerwelt / Denn Zeit ist Geld”

“Números, contas / comércio, pessoas / mundo do computador / Porque tempo é dinheiro”

Um dos aspectos mais interessante da visão de futuro exposta nos discos do Kraftwerk, no qual Computerwelt não é uma exceção, é uma ambivalência em relação à qualidade moral do futuro.

É um charme só reforçado por letras cantadas quase sem entonação e reprocessadas por vodocoders.

Assim, a faixa conclui com um tom otimista:

“Automat und Telespiel / Leiten heute die Zukunft ein / Computer für den Kleinbetrieb / Computer für das Eigenheim”

“Máquinas de venda e videogames / introduzem hoje o futuro / computadores para pequenos negócios / computadores para a nossa própria casa”

“Reisen, Zeit / Medizin, Unterhaltung / Computerwelt / Denn Zeit ist Geld”

“Viagem, tempo / remédios, entretenimento / mundo do computador / Porque tempo é dinheiro”

Um pedacinho de música

Em Taschenrechner, a próxima faixa, atenção está voltada para o próprio universo da música.

“Ich bin der Musikant mit Taschenrechner in der Hand”

“Eu sou o músico, com uma calculadora na mão”

“Ich addiere / Und subtrahiere / Kontrolliere / Und komponiere”

“Eu somo / e subtraio / controlo / e componho”, canta o verso do meio”

E aí vem a conclusão:

“Und wenn ich diese Taste drück Spielt er ein kleines Musikstück”

“E quando aperto esse botão ele toca um pequeno pedaço de música”

Essa música é o motivo de eu ter passado o trabalho de usar a versão alemã do disco. A tradução em inglês (também foram gravadas versões em francês e japonês), apesar de muito conhecida, opta por uma versão mais anódina das ideias da original (“I’m the operator of my pocket calculator”, todo um clássico).

Em 1981, quando Computerwelt foi lançado, gêneros como o hip-hop estavam ganhando visibilidade, juntando pedaços de música compostos por terceiros (somando, subtraindo, controlando e compondo, para usar os termos do Kraftwerk) como base para um trabalho novo.

O riff marcante de “Planet Rock“, a faixa do Afrika Bambaataa que é considerada o disparo inaugural do hip hop, é um sampler extraído de “Trans Europe Express”, do disco do mesmo nome do Kraftwerk.

Bambaataa usaria samplers de Computerwelt em outras faixas (assim como Missy Elliot, Madonna, REM e Coldplay e outros 100 artistas, que alguém teve a bondade de reunir neste vídeo).

Bambaataa e outros artistas da nova música negra americana da época eram fascinados por toda a estética robótica e futurista do Kraftwerk, e, em um desses inceptions que os fãs de música adoram, o estilo de dança krafterkiano (vejam se não essa versão em italiano de “Pocket Calculator” em um programa de música disco da RAI) pode ser considerada uma das inspirações para os movimentos mecânicos dos dançarinos de hip hop, os chamados b-boys.

O musikant protagonista da canção, operando suas máquinas, reordenando continuamente pedacinhos de música, é o DJ dos dias de hoje com pedacinhos de música, em busca de algo novo.

Números

Em “Nummern”, o Krakftwerk segue provando sua genialidade ao contar em vários idiomas:

“Eins, zwei, drei, vier, fünf, sechs, sieben, acht
One, two
Une, deux, trois
Uno, due, tre, quattro
Uno, dos, quatro
Ichi, ni, san, chi
Adeen, dva, tri”

Brincadeira. A letra não é das mais impressionantes, mas combinadas com as o ritmo das batidas eletrônicas e o ar austero desses números em alemão, elas dizem quase tudo que é preciso saber sobre a proposta do grupo.

Amor em tempos digitais

“Computerliebe” é talvez a faixa do LP na qual Computerwelt disfruta seus poderes máximos de antecipação do futuro, com uma descrição apurada de uma noite qualquer na vida de um usuário do Tinder (bom, talvez uma noite um pouco mais deprimente do que a média).

“Ich bin allein, mal wieder ganz allein
Starr auf den Fernsehschirm, starr auf den Fernsehschirm
Hab heut Nacht nichts zu tun, heut Nacht nichts zu tun
Ich brauch ein Rendez-vous, ich brauch ein Rendez-vous
Computerliebe
Ich wähl die Nummer, ich wähl die Nummer
Rufe Bildschirmtext, rufe Bildschirmtext”

“Eu estou sozinho, outra vez sozinho
Eu encaro a tela, eu encaro a tela
Não tenho nada o que fazer hoje de noite, não tenho nada o que fazer hoje de noite
Eu preciso de um rendez-vous, eu preciso de um rendez-vous
Amor do computador
Eu escolho o número, eu escolho o número
Envio um texto através da tela”

Claro que em 1981 o prospecto de um encontro amoroso (um rendez-vous, para usar um termo que já era datado na época e hoje parece um artefato digno de exame através de um teste de carbono 14) ainda era algo muito distante.

De fato, ele estava disponível apenas para os mais saidinhos entre aquela meia dúzia de pessoas no circuito acadêmico e militar que tinha acesso a esse tipo de comunicação naquele momento.

O ano de lançamento de Computerwelt é muito mais próximo do universo da Arpanet do que o da web de hoje. O protocolo TCP/IP, a base sobre a qual se assentou o que viria a ser conhecido como Internet só foi lançado no ano seguinte.

Os primeiros BBS e provedores comerciais datam da metade da década de 80 e a internet comercial para as massas da metade da década seguinte.

O prospecto de uma pessoa entediada deitada no sofá olhando fotos em alta resolução de outras pessoas entediadas no seu celular depende ainda da chegada da banda larga e dos smartphones, desdobramentos que demoraram ainda mais uma década.

Tanto é assim que a linguagem usada nessa letra é uma mistura do mundo conhecido das telecomunicações (“eu escolho o número”) com um outro ainda por surgir (“eu envio um texto através da tela”).

Um observador atento do comportamento humano, no entanto, não precisa antecipar todos esses acontecimentos para saber que, as pessoas sendo com são, a existência de computadores levaria ao uso deles como uma ferramenta de comunicação multifacetada.

Toda novidade importante do ponto de vista tecnológico engendra mudanças na maneira como as pessoas se comunicam, e nas regras sociais atreladas a essa comunicação, e que a mudança gera ansiedade e sentimentos contraditórios.

Já foi assim 100 anos antes, quando a Bell criou o telefone, então um instrumento meio fantasmagórico que podia separar a voz de seu dono, conectando pessoas através de uma rede.

A sensação de solidão conectada que essa música evoca tão bem é o que torna ela relevante para o ouvinte hoje e provavelmente ainda por muito tempo.

Programando o futuro

As duas faixas finais de Computerwelt, “Heimcomputer” e “It’s More Fun to Compute”, têm uma temática comum e são bem curtas, então vou agrupar elas de uma vez só para o seu benefício, ocupado leitor:

“Am Heimcomputer sitz’ ich hier
Und programmier’ die Zukunft mir”

“No computador de casa eu me sento
e programo aqui o meu futuro”

“It’s More Fun to Compute”

Estamos falando de menos de 20 palavras, mas que provavelmente servem tão bem como 20 mil para expor uma visão sobre arte por trás da obra do Kraftwerk.

Não consigo pensar em outro grupo capaz de reunir tal entusiasmo pela tarefa solitária de programar um computador em casa.

A empolgação de algumas pessoas por computadores no começo da década de 80 talvez não seja muito diferente do que sentimento de Ralf Hütter e Florian Schneider ao descobrir os primeiros sintetizadores em 1968, quando a primeira encarnação do Kraftwerk foi formada em Düsseldorf, quase na fronteira com a Bélgica.

Hoje é possível gravar discos usando um celular (literalmente), mas as máquinas capazes de produzir som através de manipulação de correntes elétricas disponíveis no final da década de 60 eram um assunto bem diferente.

Muito como os primeiros computadores, elas eram instrumentos caros e complexos mas com possibilidades abertas, cujo fim estava por ser inventado pelos usuários. O trabalho de Hütter e Schneider ao longo de anos foi descobrir essas possibilidades.

Originalmente um tecladista e um flautista, os músicos estiveram anos trabalhando na obscuridade do seu estúdio (o hoje mítico Kling Klang segue funcionando, o seu interior é um mistério) até atingir o seu marco inicial, o clássico Autobahn, de 1974 (foi a última vez que uma flauta foi ouvida em um disco do Kraftwerk).

Hütter gosta de se referir aos integrantes do grupo como musikarbeiter, ou trabalhadores da música, fazendo uma conexão entre o universo do trabalho entre o mundo da produção e da arte.

É o mesmo nexo do Bauhaus, uma escola de design, artes plásticas e arquitetura que estabeleceu nos anos 20 a base para um visão sobre arte e estética citada com frequência pelos integrantes do grupo como uma influência nas ideias sobre música do Kraftwerk.

A Bauhaus é muito lembrada pelo seu legado em arquitetura (Brasília sendo uma das consequências), por ter entre seus professores artistas como Wassily Kandinsky e Paul Klee ou pela famosas cadeiras, nas quais você pode se sentar em lugares chiques até hoje.

Mas a visão dos fundadores era muito mais ampla e visava criar as bases para a produção de artigos de consumo que fossem funcionais, baratos e possíveis de fabricação em massa. Produtos altamente funcionais, que unissem técnica e mérito artístico.

Os estudantes da Bauhaus fizeram papel de parede, máquinas de escrever e berços para bebês. Com certeza, seus professores aprovariam os produtos da Apple, ainda que talvez achassem a conversa de Steve Jobs meio brega.

O adeus dos homens-máquina

Computerwelt é considerado o último grande disco do Kraftwerk, junto aos quatro lançados nos anos 70 (Autobahn, Radio-Aktivität, Trans-Europa Express e Die Mensch-Maschine).

A opinião mais comum entre os críticos é que em 1981 o universo havia entendido a mensagem e que os dias de pioneirismo solitário estavam encerrados. Era chegado o momento de deitar nos louros.

A banda segue mais respeitada do que nunca, fazendo shows que se tornaram verdadeiras instalações de arte, algumas vezes em museus.

Ao longo dessa trajetória, o grupo plantou as bases para uma série de gêneros musicais populares hoje, como hip hop e mil variantes da música eletrônica, além de todo o pop cheio de sintetizadores dos anos 80 (muitos fãs gostam de fazer a provocação de dizer que Kraftwerk é muito mais influente sobre os rumos da música do que os Beatles, uma tese à qual eu me subscrevo).

O New Order levou muitas dessas ideias para as massas com “Blue Monday”, o single mais vendido de todos os tempos, lançado em 1983. A capa do disco imitava um disquete de 5¼. Mas isso é uma história para outro dia.


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